Marcos Valle é um dos compositores brasileiros mais conhecidos no Exterior, principalmente em Londres e no Japão. Apesar de toda a fama internacional, ele diz que se sente orgulhoso ao ouvir suas canções interpretadas por Roberto Carlos. Não são muitas, é verdade, mas certamente entraram na história da música brasileira. Marcos Valle nos conta um pouco de sua carreira, fala de Roberto Carlos e de suas músicas gravadas por ele.
* O que significa para você, um compositor consagrado internacionalmente, ter músicas gravadas por Roberto Carlos? "MV" – É uma satisfação pessoal. Ter uma música gravada por Roberto Carlos engrandece o currículo de qualquer compositor, e esse sempre foi um dos meus objetivos. O que me deixou mais satisfeito foi porque eu fiz três canções da maneira que eu gosto de compor e não qualquer tipo de música apenas para fazer sucesso. Roberto sempre me falou que queria gravar uma música minha, com o estilo de Marcos Valle e não com o estilo de Roberto Carlos. * Então vamos falar agora sobre o início de sua carreira. "MV" – no final dos anos 50, com Tom, Vinícius, João Gilberto e outros, e depois apareceu um grupo mais novo da Bossa Nova, do qual eu fazia parte junto com Edu Lobo, Dori Caymmi e Francis Hime. Com o sucesso da gravação de “Sonho de Maria”, ouros cantores se interessaram em gravar minhas músicas, entre eles o conjunto Os Cariocas, Wilson Simonal, Pery Riberto e Elis Regina. Em 1964, eu fui levado pelo Roberto Menescal para a EMI Odeon, onde gravei meu primeiro disco, com a música “Samba demais”. * Depois você e seu irmão, Paulo Sérgio Valle, foram convidados para fazer as trilhas de novelas para a TV Globo. "MV" – O convite surgiu porque até hoje eu procuro fazer uma mistura de ritmo nas minhas músicas um pouco de jazz, pop, samba, bossa nova, e isso atraiu a atenção dos produtores Nonato Buzar e Nélson Motta, que estavam começando a produzir trilhas de novelas, no início dos anos 70. Fiz com Paulo Sérgio trabalhos para várias novelas. Hoje é diferente, as músicas não são feitas especialmente para novelas, elas são escolhidas dos discos de carreira dos cantores. Roberto e Erasmo também fizeram trilha sonora, compondo todas as músicas da novela “O Bofe”. Eu adorei fazer trilhas para várias novelas, entre elas “Véu de Noiva”, “Verão Vermelho”, “Selva de Pedra”, “O cafona”, “Assim na terra, como no céu”, “Pigmaleão 70”. Algumas dessas músicas, como “Capitão de indústria”, foi gravada recentemente pelos Paralamas do Sucesso. * Existia mesmo uma rivalidade entre os cantores e compositores da Bossa Nova e a turma da Jovem Guarda? "MV" – Algumas pessoas tinham certa rivalidade, e isso até interessava à imprensa e principalmente à TV Record, que na época transmitia os programas da Jovem Guarda e da Bossa Nova. Acho que essa rivalidade era cultivada para aumentar o IBOPE dos programas. Até hoje a imprensa gosta de criar esse tipo de rivalidade para movimentar o mercado. Alguns compositores e cantores da Bossa Nova não aceitavam o tipo de música da Jovem Guarda, achavam que elas eram comerciais. Mas na minha cabeça essa divisão não existia porque mesmo fazendo parte da Bossa Nova eu tinha muita influência da música pop e da música negra americana. Eu tinha uma boa convivência com o pessoal da Jovem Guarda, com o Jerry Adriani, e principalmente com o Erasmo Carlos, que é meu grande amigo até hoje. Alguns artistas da Bossa Nova eram mais conservadores. * Qual a importância da Jovem Guarda na música brasileira? "MV" – Teve tanta importância quanto a Bossa Nova. A Jovem Guarda enriqueceu muito a música brasileira lançando vários artistas. Mas como em todo movimento musical, só poucos cantores conseguiram se manter no mercado. As carreiras de Roberto e Erasmo provam a importância da Jovem Guarda. O movimento do rock acabou mas eles continuam sendo reconhecidos até hoje, principalmente Roberto, que passou a fazer música romântica, ao contrário do Erasmo que ainda continua gravando alguns rocks. O rock brasileiro que se faz veio daquela época, os roqueiros de hoje foram influenciados por Roberto, Erasmo e companhia. Até mesmo o Tropicalismo foi influenciado pela Jovem Guarda. É bom destacar a riqueza da música brasileira, que ao longo desses anos teve vários estilos musicais, todos bastante criativos e importantes para a nossa cultura. * Como você conheceu Roberto Carlos? "MV" – Os nossos primeiros encontros foram nos corredores da TV Record, onde ele comandava o “Jovem Guarda” e eu participava de outros programas. Depois eu participei de um programa dele, já em outra emissora, acho que era na TV Tupi, quando eu e o Milton Nascimento fomos convidados para cantar “Viola enluarada”. Eu me recordo que Roberto até nos apresentou com aquele jeito característico, “e com vocês, os meus amigos Marcos Valle e Milton Nascimento”. Nós também nos encontramos na TV Rio, no programa do Jair de Taumaturgo. * Gostaria que você falasse agora sobre a importância de Roberto Carlos na história do rock brasileiro. "MV" – Qualquer movimento musical ou não, tem que ter um líder, alguém que desperte e que chame a atenção. Temos como exemplo o tênis, que só se tornou uma paixão nacional depois das conquistas do Guga. O mesmo se pode dizer em relação às corridas, com Ayrton Senna. Na Jovem Guarda não foi diferente, com a liderança do Erasmo, Wanderlea e principalmente Roberto Carlos. Desde aquela época Roberto tinha um grande carisma, e várias músicas que ele e Erasmo fizeram até hoje são clássicos da música brasileira. Nos anos 60, Roberto já era um intérprete fantástico, que se aproximou, se sofisticou e se tornou um dos maiores intérpretes da música brasileira de todos os tempos. Roberto nunca se prendeu a nenhum estilo musical. A prova disso foi quando ele deixou o programa “Jovem Guarda”, no auge do sucesso, para iniciar sua carreira de cantor romântico. * Você também saiu da Bossa Nova e se lançou na música romântica. Como foi esse processo? "MV" – Depois que lancei um disco em 1988, resolvi dar uma parada na minha carreira de cantor e me dedicar às composições. Nessa época, meu irmão Paulo Sérgio já estava compondo para esse mercado de canções românticas e comecei a receber incentivos de amigos para seguir o mesmo caminho. Então resolvi entrar nesse mercado, mas sempre procurando fazer uma harmonia mais sofisticada nas minhas músicas, pois é assim que eu gosto de compor. Foi também nessa época que Paulo Sérgio me apresentou ao Carlos Colla. Logo no nosso primeiro encontro ele me convidou para ser seu parceiro. Fizemos várias canções, as que foram gravadas por Roberto Carlos e também por outros cantores, entre elas “Paixão antiga”, gravada por Tim Maia. Mas eu tive que parar de compor porque comecei a fazer sucesso no Exterior, principalmente na Europa e no Japão. Assim voltei a me dedicar à carreira de cantor. * Você também sentiu por parte da crítica um certo preconceito com esse tipo de música? "MV" – Sem dúvida, algumas pessoas estranharam quando eu comecei a fazer esse tipo de música e até escreveram que eu estava fugindo das minhas raízes musicais. Mas eu nunca pensei dessa maneira, me senti muito feliz e satisfeito, principalmente porque não fugi das minhas características harmônicas. “Não de deixe”, gravada por Roberto Carlos, tem um estilo bem Bossa Nova, só que Roberto gravou a música de uma maneira muito bonita, com um seguimento mais lento. Até o arranjo do Eduardo Lages seguiu a sugestão que eu dei. Eu fiquei muito feliz por ter feito músicas para esse mercado, chamado por alguns de popular. * Já que você falou de “Não me deixe”, vamos relembrar suas músicas gravadas por Roberto Carlos, começando com “Como as ondas do mar”. "MV" – “Como as ondas do mar” é uma parceria com Carlos Colla. Antes de fazer a melodia eu ouvi algumas músicas do Roberto Carlos para me inspirar. Com a harmonia pronta, Colla imediatamente fez a letra. Ela é uma canção singela e simples que agradou ao Roberto, mas reconheço que ficou um pouco diferente do estilo que estou acostumado a fazer. Até Roberto Carlos estranhou. Mas eu tive uma alegria grande com “Com as ondas do mar”, pois foi a minha primeira música gravada por ele, o que era um desejo meu já bem antigo. * Em 1991, Roberto Carlos gravou “Não me deixe”. "MV" – “Não me deixe” já tem uma harmonia mais elaborada, meio bossa nova, como eu gosto de compor. Mas fiquei na dúvida se ela iria agradar ao Roberto Carlos. Carlos Colla colocou uma letra que se encaixou perfeitamente com a melodia, Roberto fez uma gravação muito bonita e Eduardo Lages também foi muito feliz no arranjo, praticamente seguindo o arranjo que eu fiz na fita que mandamos ao Roberto com a canção. Eu coloquei a melodia de “Não me deixe” exatamente o que eu sou e o que eu sentia na época. * Você sabia que a versão em castelhano de “Não de deixe” foi a música de maior sucesso no Exterior do disco que Roberto Carlos lançou em 93?"MV" – "MV" – Não, e até me surpreendo com essa informação pois é uma música de que gosto muito e que foi pouco divulgada aqui no Brasil. Fico feliz com essa notícia. * Depois veio “Tanta solidão”, uma parceria com seu irmão e Mauro Motta. "MV" – Essa música também tem uma harmonia bastante elaborada mas, ao contrário de “Não me deixe”, ela foge um pouco do estilo bossa nova, tendo uma levada meio pop. Recebi uma ligação do Mauro Motta perguntando se eu tinha alguma música para Roberto Carlos gravar. Então eu fiz uma parte da melodia e Mauro a completou. Depois, eu, Mauro e Paulo Sérgio fizemos a letra, sendo que setenta por cento da letra é do meu irmão. Quando mandei para o Mauro a parte da melodia que eu havia feito, já existia a frase “foi tanta solidão amor”. Foi uma das músicas mais tocadas do disco de Roberto Carlos daquele ano. * Você também participou da letra de “Não me deixe” e “Como as ondas do mar”? "MV" – As letras são do Carlos Colla mas eu dei alguns palpites numa palavra ou numa frase quando ele pedia. Tive pouca participação. * Roberto chegou a fazer alguma mudança na melodia ou nas letras de suas músicas? "MV" – Não, e isso é até interessante porque eu sei que ele gosta de adaptar as músicas ao seu estilo. Entretanto, quando eu gravo o que nós chamamos de fita demo, com teclado e às vezes com uma bateria eletrônica, Roberto praticamente segue o meu arranjo original. Uma vez Erasmo me contou que Roberto gosta muito das minhas gravações caseiras e que as ouve com muita atenção. Ele praticamente seguiu o meu arranjo nas três músicas, mas é lógico que as enriqueceu com os outros instrumentos e, claro, com sua interpretação. * “Tanta solidão”, sua última música gravada por Roberto Carlos, é de 1991. Você chegou a fazer alguma outra que ele não tenha gravado? "MV" – Eu cheguei a mandar uma música para ele, uma parceria com Paulo Sérgio, que quase entrou no disco, só não me lembro de que ano. Também não sei porque ele não a gravou. Mas com o sucesso da minha carreira no Exterior, eu deixei de compor. Voltar a fazer músicas para outros cantores vai ser difícil no momento porque não tenho mais tempo. Para Roberto Carlos a gente sempre abre uma exceção, dá um jeitinho na agenda. Claro que eu gostaria de voltar a fazer músicas para ele. No ano passado Carlos Colla me ligou perguntando se eu queria fazer uma música com ele para o disco do Roberto, mas por falta de tempo ficou só o convite. * Você chegou a acompanhar as gravações de suas músicas? "MV" – Não, eu entrego a música, coloco na gravação a maneira como eu gostaria que ela fosse gravada e fico torcendo para que ele goste. Graças a Deus as minhas três músicas que ele gravou sempre se aproximaram da minha ideia original. Só uma vez Roberto Carlos me ligou e mostrou uma parte da música para que eu a ouvisse pelo telefone, mas geralmente eu só ouço a gravação quando ele lança o disco. * Gostaria que você falasse um pouco do compositor Roberto Carlos. "MV" – Todo compositor tem um estilo próprio de fazer música. A característica de compor e de cantar do Roberto Carlos é só dele. Mas é importante o compositor estar atendo a todos os estilos musicais. O tipo de música que Roberto Carlos faz hoje é diferente do tipo que ele fazia nos anos 60, 70 e 80. Nenhum compositor pode parar no tempo, o compositor tem que estar ligado a todo tipo de música. Um exemplo é o próprio Roberto Carlos , que este ano lançou um rap. É claro que o rap dele é completamente diferente daqueles dos compositores que fazem esse tipo de música, mas é um rap ao estilo de Roberto Carlos, o que não deixa de ser algo diferente em sua carreira. Não podemos esquecer que Roberto tem inúmeros clássicos na música brasileira ao longo de várias décadas. Se eu tivesse que escolher uma determinada época do Roberto Carlos, eu escolheria os anos 70, mas ele e Erasmo têm muitas canções de outras décadas que fazem parte da história da música popular brasileira. Houve uma determinada época em que eu esperava um pouco mais de renovação nas músicas do Roberto, o que não aconteceu, mas quando agora o ouço cantando um rap, penso que ele e Erasmo estão em busca de novos caminhos. Talento eles têm de sobra. * O que você achou de “Seres humanos”? "MV" – Como eu sou suma pessoa aberta a todo estilo musical, achei muito interessante, gostei, e acho que essa música pode contribuir muito para a carreira de Roberto Carlos. Pode ser até que uma parte do seu público tenha estranhado ouvir Roberto Carlos cantando rap, mas é um elemento novo par a sua carreira, que pode fazer com que ele conquiste um determinado público que não estava ligado ao seu trabalho. Eu achei a música bem feita e de grande qualidade. * De todas as músicas compostas por Roberto Carlos, há alguma que você gostaria de ter feito? "MV" – “Sentado à beira do caminho” e “Detalhes” são grandes clássicos de Roberto e Erasmo. * Como você define Roberto Carlos? "MV" – Roberto tem uma maneira própria de viver, que eu respeito e acho interessante. É uma pessoa que tem um carinho por todo o mundo e transmite amor. Sobre sua excentricidade, acho normal. Todo artista é excêntrico mas somos seres humanos como quaisquer outros. Temos nossos momentos de solidão, de necessidade, e é assim que criamos nossas músicas. Roberto Carlos tem um jeito de viver a vida que é só dele, como o João Gilberto tem o seu próprio jeito e eu tenho o meu. Já o cantor Roberto Carlos melhora a cada ano, principalmente a sua voz e o seu timbre. É o intérprete número um do Brasil. Como compositor ele e Erasmo fizeram canções importantíssimas para a música brasileira, ainda dão uma contribuição à nossa cultura e até hoje são respeitados por todos os intérpretes, até mesmo por aqueles que cantam outros estilos de música. Eu só tenho que aplaudir Roberto e também Erasmo, que tanto contribuiu para o sucesso de seu amigo. "justify"> |