Em setembro de 2000, se completaram 30 anos da primeira grande produção de Roberto Carlos, o show “Roberto Carlos a 200 km. por hora”, no palco do Canecão. Marcos Lázaro, seu empresário na época, convidou a dupla Miele e Bôscoli, que já fazia grande sucesso dirigindo grandes cantores, como Elis Regina, Wilson Simonal e nomes da Bossa Nova para dirigir Roberto Carlos. O trio fez tanto sucesso que trabalharam juntos até o show Luz, o último dirigido por Ronaldo Bôscoli, que faleceu logo depois. Já Miele, até hoje está trabalhando com Roberto Carlos. Ele relembra e comenta a temporada, quando, “a 200 km. por hora”, Roberto Carlos decolou rumo ao sucesso não mais como rei do yê-yê-yê, mas como grande ídolo brasileiro.
* Como surgiu o convite para você e Ronaldo Bôscoli dirigirem o primeiro show de Roberto Carlos no Canecão? "M" – Nós dirigíamos dois programas, “O Fino da Bossa” e um com Wilson Simonal, mas os programas já estavam acabando e eu iria voltar para o Rio de Janeiro, e estava devendo uma quantia grande para o meu empresário, Marcos Lázaro, que também era empresário do Roberto Carlos. Como forma de pagamento ele me chamou para dirigir com Ronaldo Bôscoli o show do Roberto Carlos no Canecão. Não tive outra saída a não ser aceitar o convite. * Este show foi a primeira super-produção para Roberto Carlos? "M" – Foi, antes ele se apresentava apenas em clubes e pequenos teatros, com o seu conjunto. Resolvemos colocá-lo no palco do Canecão com cenografia, uma grande orquestra, figurino e até mesmo um carro de corrida no cenário. * Como foi o encontro com Roberto? "M" – Eu só o conhecia dos corredores da TV Record. Nos encontramos num show beneficente em São Paulo. Fui sozinho conversar com ele, que me pediu uma proposta de produção. Assim surgiu o “Roberto Carlos a 200 km. por hora”, com cenografia do Marco Antônio Pudny, baseada na paixão de Roberto pela velocidade. * Como surgiu a ideia de Roberto Carlos cantar com uma orquestra, algo inédito, em sua carreira? M – Convidamos o Chiquinho de Moraes, em que depositávamos a mais absoluta confiança. Daí convidamos também o Quinteto Villa-Lobos e um coral, mas contávamos ainda com a banda do Roberto Carlos, o RC-7. Foi preciso fazer algumas mudanças porque poucos músicos da banda do Roberto sabiam ler músicas. * Como você e o Bôscoli dividiam a direção dos shows? "M" – Ronaldo sempre foi uma pessoa de ideias, enquanto eu atuava mais no palco. Eu colocava em ação o que o Ronaldo elaborava. Eu respondia pela luz, som, arranjos e aberturas, enquanto ele dava ideias e escrevia os textos. Ronaldo sempre dizia que ele era apenas um copy-desk do Roberto porque escrevia o que Roberto pensava, colocando as suas falas de uma maneira mais poética sem fazer muitas alterações em sua maneira de dizer as frases. * Mas não havia no início uma certa rivalidade do pessoal da Bossa Nova com a turma da Jovem Guarda? "M" – Nós da Bossa Nova tínhamos um certo preconceito do movimento da Jovem Guarda. Éramos muito elitistas e achávamos a Jovem Guarda um movimento popular e alienado. Mas isso foi uma grande bobagem, desfeita depois, tanto que a Elis Regina participou do programa Jovem Guarda e chegou até a gravar músicas do Roberto Carlos. * Como foi convencer Roberto a uma mudança tão radical em sua carreira? "M" – Sempre foi difícil convencer Roberto a fazer coisas que ele não concorda. Se você sugere algo e ele logo acha a ideia formidável, pode ter certeza de que irá colocar no show, mas quando ele começa a falar “bicho, vamos ver, será que vai ficar bom?”, pode desistir, porque ele vai adiando a decisão e só às vésperas é que ele diz que não vai usar a ideia. Ele sempre teve a consciência do que quer, e isso é a base de sua carreira. * De todas as ideias, qual a que vocês colocaram em ação que pensavam que ele nunca iria aceitar? "M" – Foi quando ele cantou caracterizado de palhaço. Até ele se convencer foi difícil, mas acabou aceitando a sugestão e foi algo espetacular em sua carreira, saindo nas capas das revistas mais importantes do país. Aquilo foi um grande risco para nós e cheguei até a brincar com o Ronaldo que se não desse certo nós teríamos que nos mudar para La Paz, ou qualquer outra cidade da América do Sul. * De quem foi a sugestão do nome do show, “Roberto Carlos a 200 km. por hora”? "M" – Acho que foi do Ronaldo, não sei... Sugestões assim sempre partiam dele. * Também foi o Ronaldo quem sugeriu ao Roberto entrar no palco pilotando um carro? "M" – Essas coisas malucas eram do meu saudoso e querido amigo Ronaldo Bôscoli. Eu tentava colocá-las em prática e torná-las possíveis. O Ronaldo sempre teve ideia mais arrojadas. * Como foi a reação do Roberto Carlos ao cantar com uma orquestra? "M" – Como ele não estava acostumado, combinei com o Chiquinho de ensaiar tocando uma oitava abaixo, como em seus shows. Só com o andamento dos ensaios foi que o Chiquinho colocou a orquestra uma oitava acima para ficar compatível com o tamanho do Canecão. Foi meio complicado no começo mas logo ele se acostumou. Com os textos também foi meio difícil. Quando ele não gostava, dizia pela metade ou nem dizia nada. Se gostava muito, dizia completos. Às vezes ele muda alguma coisa do original, ainda hoje é assim. * Ouvi falar que Roberto não deixou vocês assistirem aos primeiros ensaios. Isso é verdade? "M" – O que aconteceu foi que no início dos ensaios eu, o Ronaldo, o Mário Priolli, o iluminador e outras pessoas da produção ficávamos numa mesa bem na frente dele, e isso o deixava inibido. Um dia resolvemos nos afastar e apagar as luzes da plateia para que ele ficasse mais solto. * Vocês chegaram a temer um possível fracasso? "M" – Pelo contrário, até apostamos que iria ser uma mudança muito positiva em sua carreira, e acho que assim foi, porque ele continuou com o público que comprava seus discos e ganhou novos fãs, de platéia de palcos de grandes espetáculos, que são pessoas que vão a shows mas que não compram discos. A plateia do Roberto Carlos não é uma grande compradora de discos, eles podem ter um ou outro, mas com certeza não têm toda a coleção como vocês. Com isso ele passou a ter um público de compradores de disco e um público de shows. * A estreia do Roberto Carlos no palco do Canecão foi tensa para vocês? "M" – Todo artista fica tenso, o que é natural, mas como aquele show foi todo especial, ele deve ter sentido algo diferente. Mas não dá para sentir muito a tensão do Roberto Carlos porque ele fica trancado no seu camarim, rezando e só sai minutos antes de entrar no palco. Aquele camarim é sagrado e poucos têm acesso, a gente só o vê quando ele sai de lá e diz: “Agora vamos”. E ele sai tranqüilo, dá uma olhadinha no espelho, ajeita o paletó, que até hoje é feito por um alfaiate de Buenos Aires, e entra no palco. * Como eram as manias do Roberto naquela época? Existiam? "M" – Sempre houve isso, mas todas as suas manias são inofensivas, e eu as respeito. Eu me lembro de um show em que ele saiu do camarim foi para o palco, mas o local tinha um acesso fácil para os fãs e para os funcionários do Canecão. Um dia enquanto ele ensaiava no palco, eu pedi para o Pepe colocar uma outra porta para dificultar esse acesso. Quando o Roberto terminou o ensaio e percebeu que havia uma outra porta que não existia antes, ele pediu para que ela fosse retirada e voltou para o palco, onde ficou ensaiando até o Pepe retirá-la. * Dirigir Roberto Carlos marcou sua carreira e a do Ronaldo Bôscoli? "M" – Com certeza, e sei que até hoje sou convidado para outros trabalhos por ser o produtor dos shows de Roberto Carlos. Isso foi uma assinatura importante para nós. * Que diferença você apontaria entre dirigir Roberto Carlos há 30 anos e hoje? "M" – Existem profundas diferenças. Isso que vou falar aqui eu não sei como ele irá interpretar. Eu acho que não volto a dirigir seus shows. Tenho quase certeza disso. Na última temporada, “Romântico”, ele não ficou satisfeito com uma edição que fiz com a imagem de Cristo. Tentei fazer o melhor possível, mas nunca ficava como ele queria. Um dia, quando cheguei para o show, vi uma imagem completamente diferente da que eu tinha feito. Ele havia pedido ao Genival para refazer a edição, eu não gostei, e nunca mais nos vimos. Eu fiquei chateado porque ele podia chegar para mim e falar que o trabalho estava uma porcaria, afinal tínhamos intimidade para isso. Mas não, ele mandou refazer o trabalho sem me consultar. Eu nunca mais apareci no show. Também quando Maria Rita faleceu eu não o procurei. Apesar de querer muito falar com ele naquele momento de dor, fiquei com receio de que ele pudesse achar que eu estava querendo me aproveitar para uma reaproximação. Não sei como ele entendeu esse meu gesto de não procurá-lo. Continuo gostando muito do Roberto e, se não vier a dirigir o seu próximo show, de qualquer forma farei questão de assistir da primeira fila e depois convidar Roberto Carlos para tomar um whisky. * Miele, você se deu conta de que o show “Roberto Carlos a 200 km., por hora” está fazendo trinta anos? "M" – Sinceramente, até a sua ligação eu não tinha a menor ideia de que ele completou trinta anos no dia 3 de setembro. "justify"> |